Foto de Isabel Gomes da SilvaTem uma voz anasalada mas não irritante, derivação acústica da renite que me confessou mais tarde ou simplesmente a ressonância naturalmente possível para quem é sumária em peso e altura. Chamou-me no outro dia na rua, coisa vulgar entre amigos, não fora estar eu de costas e caminhando a passos largos – que os não sei dar de outro modo – e ir já a caminho de desaparecer do alcance de ambas. Portanto, presumo que me chamou a si, e portanto, auto-legitimo o meu direito de começar a presumir – leia-se fantasiar, imaginar, desejar – uma série de outras coisas. Mas não o vou fazer para já. Quedar-me-ei por uma análise descritiva, não desapaixonada, daquelas que se lê nos primeiros capítulos das dissertações académicas.
Ao segundo encontro é possível, muito pela sua quietude e minimalismo gestual, ler quase tudo sem deixar de a ouvir por mais do que um segundo.
O cabelo, mais belo se ligeiramente despenteado pela brisa do que no arrumo acabado-de-sair-do-espelho de um corte um tanto anacrónico ou, simplesmente, sóbrio, semi-emoldura um rosto onde maxilares menos femininos, sem serem o mais marcante no mesmo, configuram uma quadratura quase simétrica que se reproduz de frente e de perfil de forma invulgarmente coerente. Tudo isto culminando num nariz que alguém apertou à nascença e assim ficou, pequeno e quase infantil. Como o é, aliás, a pele. Manifestamente incólume ao fumo do tabaco, ao pó ou a ocasionais faltas de sono, a candura epidérmica revela-se ainda mais doce a contra-luz, porquanto permite focar uma descolorada penugem, daquelas que temos de forma mais evidente em crianças mas que quase sempre largamos por volta dos treze. Ela não. E os únicos traços que nos encorajam a arriscar supor outra idade que não a aparente são, por debaixo e nos cantos dos olhos, semi-paralelos e finíssimos vincos que, de ténues e elegantes, me levam a crer que não serão, daqui a uns anos, os sinais mais evidentes da sua maturidade morfológica.
Até porque a atenção dos desatentos gravita inevitavelmente, nessa região, para dois olhos-luz, pequenos mas enfeitados com generosidade por pestanas que lhe nascem até nos cantos dos olhos, sem exageros – não mais do que duas de cada lado – mas com uma rebeldia quase risível, que ela própria aprecia carinhosamente ou ignora, porque não as arranca.
A tal luz é azul ou azul-cinza e dói, já que as sobrancelhas, mais escuras que o cabelo, outra coisa não fazem do que acentuá-la. As mãos, já pequenas e brancas, tratou ela de encurtar roendo as unhas com um critério que torna a operação quase insuspeita mas que não se revela nos dentes. Brancos e alinhados, que os lábios fininhos destapam, aqui e ali, para uma vogal mais aberta ou para um sorriso balsâmico que quase me impede de deixar de a ouvir por não mais do que um segundo.
Por detrás das mãos, quando sentada de cotovelos apoiados na mesa, ficam suavíssimas pregas de um pescoço tão branco como aquelas, do qual se desce até ao peito, novamente infantil e no qual o soutien não é mais do que acessório sem que isso a torne menos desejável, bastando, aliás, que se levante e nos vire as costas para aniquilar sacerdotais platonismos.
De um certo ponto de vista, a morfologia deste pequeno anjo é infinitamente compatível com a minha ultra-proteinada e desengonçada existência física: encolhida, caberia toda no meu colo.
É bela, e isso é o mínimo que posso pensar, mas o máximo que as minhas competências para o discurso directo ou narrativo me permitem afirmar por ora, que outras coisas além destas apenas cabem na minha imaginação e mantêm-se intangíveis no verbo e na adjectivação.
Mais do que indizíveis futuros e resoluções no que àquilo que eu possa valer para ela diz respeito, atemoriza-me a sua aparição inclassificável na minha, até agora, por demais paradigmática e bipolarizada existência emocional.
Amo-a já, inevitavelmente, e o meu medo vai acordando, cafezinho após cafezinho.