Monday, March 5, 2007

A minha vila-cidade é, de repente, uma coisa boa.


Foto de Isabel Gomes da Silva

Tem uma voz anasalada mas não irritante, derivação acústica da renite que me confessou mais tarde ou simplesmente a ressonância naturalmente possível para quem é sumária em peso e altura. Chamou-me no outro dia na rua, coisa vulgar entre amigos, não fora estar eu de costas e caminhando a passos largos – que os não sei dar de outro modo – e ir já a caminho de desaparecer do alcance de ambas. Portanto, presumo que me chamou a si, e portanto, auto-legitimo o meu direito de começar a presumir – leia-se fantasiar, imaginar, desejar – uma série de outras coisas. Mas não o vou fazer para já. Quedar-me-ei por uma análise descritiva, não desapaixonada, daquelas que se lê nos primeiros capítulos das dissertações académicas.
Ao segundo encontro é possível, muito pela sua quietude e minimalismo gestual, ler quase tudo sem deixar de a ouvir por mais do que um segundo.
O cabelo, mais belo se ligeiramente despenteado pela brisa do que no arrumo acabado-de-sair-do-espelho de um corte um tanto anacrónico ou, simplesmente, sóbrio, semi-emoldura um rosto onde maxilares menos femininos, sem serem o mais marcante no mesmo, configuram uma quadratura quase simétrica que se reproduz de frente e de perfil de forma invulgarmente coerente. Tudo isto culminando num nariz que alguém apertou à nascença e assim ficou, pequeno e quase infantil. Como o é, aliás, a pele. Manifestamente incólume ao fumo do tabaco, ao pó ou a ocasionais faltas de sono, a candura epidérmica revela-se ainda mais doce a contra-luz, porquanto permite focar uma descolorada penugem, daquelas que temos de forma mais evidente em crianças mas que quase sempre largamos por volta dos treze. Ela não. E os únicos traços que nos encorajam a arriscar supor outra idade que não a aparente são, por debaixo e nos cantos dos olhos, semi-paralelos e finíssimos vincos que, de ténues e elegantes, me levam a crer que não serão, daqui a uns anos, os sinais mais evidentes da sua maturidade morfológica.
Até porque a atenção dos desatentos gravita inevitavelmente, nessa região, para dois olhos-luz, pequenos mas enfeitados com generosidade por pestanas que lhe nascem até nos cantos dos olhos, sem exageros – não mais do que duas de cada lado – mas com uma rebeldia quase risível, que ela própria aprecia carinhosamente ou ignora, porque não as arranca.
A tal luz é azul ou azul-cinza e dói, já que as sobrancelhas, mais escuras que o cabelo, outra coisa não fazem do que acentuá-la. As mãos, já pequenas e brancas, tratou ela de encurtar roendo as unhas com um critério que torna a operação quase insuspeita mas que não se revela nos dentes. Brancos e alinhados, que os lábios fininhos destapam, aqui e ali, para uma vogal mais aberta ou para um sorriso balsâmico que quase me impede de deixar de a ouvir por não mais do que um segundo.
Por detrás das mãos, quando sentada de cotovelos apoiados na mesa, ficam suavíssimas pregas de um pescoço tão branco como aquelas, do qual se desce até ao peito, novamente infantil e no qual o soutien não é mais do que acessório sem que isso a torne menos desejável, bastando, aliás, que se levante e nos vire as costas para aniquilar sacerdotais platonismos.
De um certo ponto de vista, a morfologia deste pequeno anjo é infinitamente compatível com a minha ultra-proteinada e desengonçada existência física: encolhida, caberia toda no meu colo.
É bela, e isso é o mínimo que posso pensar, mas o máximo que as minhas competências para o discurso directo ou narrativo me permitem afirmar por ora, que outras coisas além destas apenas cabem na minha imaginação e mantêm-se intangíveis no verbo e na adjectivação.
Mais do que indizíveis futuros e resoluções no que àquilo que eu possa valer para ela diz respeito, atemoriza-me a sua aparição inclassificável na minha, até agora, por demais paradigmática e bipolarizada existência emocional.
Amo-a já, inevitavelmente, e o meu medo vai acordando, cafezinho após cafezinho.

2 comments:

Anonymous said...

como entendo o medo que acorda quando alguém nos entra como brisa fresca que desarruma e faz chegar um sorriso teimoso e bailador. O medo...

Anonymous said...

É, sem margem para dúvida, um homem alto e com um porte um tanto atlético, consequência possível da herança genética com que foi presenteado, reforçada porventura pelo gosto pela natação que há muito lhe conhecia, e que pude depois confirmar pelo entusiasmo com que se entregava à modalidade e com que seguia de perto os resultados dos campeões.
Chamei-o no outro dia na rua, decidida a aproveitar a oportunidade que o destino me oferecia naquele fim de tarde para iniciar um contacto que já várias vezes me tinha ocorrido; sem expectativas maiores que não fossem as de o conhecer melhor e aproveitar a sua eventual companhia para me distrair um pouco do trabalho solitário que penosamente me ocupava os dias. Ele rapidamente acedeu aos meus convites, e a urgência com que nos passámos a procurar auto-legitimou o meu direito de começar a presumir – mas não mais do que isso – que uma série de outras coisas nos poderiam vir a passar pela mente. Não tive de esperar muito para confirmar, ainda assim com alguma surpresa, que ao segundo encontro os meus gestos e expressões tinham já sido observados com um detalhe tal – pouco vulgar entre amigos – que lhe tornava possível a descrição de pormenores de que nem eu própria havia tomado grande consciência.
A declaração pública do seu interesse por mim, leia-se das fantasias e desejos que à época lhe assolariam o espírito, fez-nos caminhar a passos largos – porventura não os soubemos nem quisemos dar de outro modo – para uma relação que, por alguns dias, estou convencida, ambos pensámos ser das melhores coisas que já nos tinham acontecido na vida. Ele assim o balbuciava enquanto adormecia, teimosamente enroscado em mim; e eu bem o poderia ter dito também, nessas primeiras noites, induzida por uma doce sensação de conforto e esperança da qual há muito havia perdido a memória.
Não que sua presença ou o seu modo tocar e sentir não me fossem estranhos, por vezes quase incómodos – nunca deixaram de o ser. Nem que a forma como desde cedo nos habituámos a estar um com o outro não me deixasse, frequentemente, um travo amargo e frustrante na boca. Ás vezes não me reconhecia ao seu lado. E provavelmente também ele cedo enfrentou a traição das fantasias criadas nos primeiros contactos – não inevitável, mas ainda assim sempre provável, quando se trata já se conviver com uma pessoa de carne e osso, e não de viver um amor platónico, para os quais tanta vocação parece ter.
Os indícios do fracasso estiveram sempre presentes. Mas eu procurava - insistentemente mas, admito, sem sucesso - que o meu desejo de amar e ser amada falasse mais alto e obscurecesse a insatisfação. Desejava que o carinho e o respeito fossem compensando a progressiva diminuição daquele tremor inicial que nos inebria e impele para o outro, mas que – qualquer adulto sabe – sempre se esbate ao fim de algum tempo, para voltar por vezes a espreitar quando menos se espera. E interpretava a partilha de tantos valores, traços de personalidade e visões do mundo – evidente sem esforço – como uma oportunidade preciosa, que não queria desperdiçar, para construir algo em comum, que, sentia, há muito ambos aspirávamos. Não queria acreditar que não seria possível; mesmo que tantas vezes sentisse o impulso para abandonar a empreitada.
Procurei falar, partilhar incertezas, reconstruir desejos. Ele não. Ao contrário do prometido, por bem mais de um segundo não ouviu, não quis ouvir ou fugiu à resposta. O silêncio instalou-se, doeu e corroeu, já que a indiferença outra coisa não faz do que acentuar a distância e impossibilitar a antevisão de um futuro, nunca perfeito, mas ainda assim eventualmente gratificante. À contra-luz, revelámo-nos cada vez mais uma descolorada miragem do que havíamos sonhado ser. O fascínio inicial desvaneceu-se e, agora desatentos, pouco víamos mais além.
Restará a memória de uma relação que alguém apertou à nascença e assim ficou, pequena e quase infantil. Cruelmente, para os demais. De um certo ponto de vista, os contornos assumidos por esta história confirmaram a difícil compatibilidade entre um ser sonhador, bucólico e idealista, e uma personagem que tem dificuldade em tirar os pés do chão, que prefere acreditar que a vida pode ser vivida mesmo quando as cartas disponíveis não são as perfeitas, e que gosta do desafio de construir coisas novas, a partir daquilo que lhe dão; nem sempre o sabe fazer.
Já não o amo, inevitavelmente, nem sei se o cheguei a amar. Mas, mais importante, a minha confiança no futuro vai voltando a acordar, noite após noite. É, para já, o mínimo que posso pensar, e o máximo que as minhas competências discursivas e reflexivas permitem afirmar por ora, que outras coisas permanecem ainda por decifrar. E outras há que merecem ficar apenas para quem as viveu.